Este espaço foi criado para que outras pessoas existam mais do que eu mesma... outras pessoas dentro de mim... mais que heterônimas, homônimas, máscaras... pessoas que sou muito mais que eu mesma... pois quando as sou... sei que não preciso mais representar.
sábado, 26 de setembro de 2009
A solidão numa existência inventada
Era manhã e uma dor na espinha já acusava que aquele seria o dia de parir...
Mandou os outros quatro filhos para a casa da sede, dos avós, que tinha mais conforto; manteve-se em sua casa de pau a pique, porta de tábuas desencontradas, chão de terra batida rebocada com cinza molhada (dando uma sensação de piso cimentado), para dar conta das últimas tarefas de dona de casa, deixar as roupas arrumadas, as vasilhas para quando chegar a hora, a merenda do marido que estava na roça desde a madrugada, o milho para as galinhas, a lavagem para os porcos, vaca alimentada com cana de açúcar, "trens" lavados e na bacia ao sol, roupas do próximo rebento sobre o berço acomodadas no pequeno colchão de palha rasgada. Cueiros, faixas de umbigo, muitas mantas, pagãos (todos feitos de flanela pelas mãos da mãe, que nem o sexo de seu bebê). Depois de tudo arrumado, com as dores cada vez mais próxima entre elas, o marido chega no final da tarde, sujo, exaurido, extenuado, é recebido com a notícia que será naquela noite a chegada da quinta cria...
Feliz e abobado, toma um banho na bacia grande de alumínio manchado, vai para buscar a parteira carreador afora, reza pelo caminho, ida e volta reza, sua fé mantém uma família unida, humilde e feliz.
A mãe fica em casa, com as dores do parto se apertando, aguniada apesar de ter passado por isso cinco vezes nos últimos seis anos (o primeiro morreu após o parto, nasceu "doentinho"). Anda pela casa de dois cômodos, contorcendo-se, entre os poucos móveis de madeira descascada, geme e respira ofegante...
percebe uma pressão forte em sua bacia... vai até o quarto... num instinto de fêmea ... agacha sobre a cama de palha... percebe que a hora chega e que ninguém lhe vem em socorro... faz força e respira fundo... e num desespero da solidão e da necessidade vem ao mundo mais uma filha... é feia, não só porque está suja e arroxoeada pelo trabalho de parto exaustivo e extasiante, mas porque era feia mesmo, uma menina que vem ao mundo sozinha não pode sair coisa fácil, pensa a mãe embriagada pela dor e queda de pressão...
Bicho que nasce sozinho, ninguém segura, não precisa de ninguém, de porto seguro, de mão para segurar, de muito colo... veio sozinha (Feito KIRIKU e a feiticeira)...
Enrola-a em cueiros, aproxima-a do corpo entre panos de carne crua, espera a chegada da parteira e do marido para o corte do cordão... já tem dois meninos e duas meninas, o que viesse seria bom, veio sem preferência... o pai chegou um quarto de hora depois, guiado pelo lampião, trouxe uma velha parteira da vizinhança, logo acudiu a criança, que chorou pouco, cortou o cordão, passou mertiolate, protegeu seu "pé" enrolando depois a extensa faixa, primeiro no ventre, depois por todo o corpo, como um casulo de bicho da sede, no final: faixa, pagão, cueiro, manta... só ficou o rosto a mostra, o corpo todo estava imóvel, agora o pai pode pegá-la: chorou, deu-lhe o nome e também observou sua ausência de beleza... seria uma menina feia...
Uma semana depois ocorreu uma tempestade, dessas que derrubam casas, árvores e pontes... a casa manteve-se de pé pela fé, o casal ficou de água até a cintura, a menina feia sobreviveu entre acolchoados de pãina, muito pesados e grossos... foi uma tragédia, a mãe quebrou o resguardo, ficou louca por um ano, deu os filhos aos padrinhos, não podia ficar sozinha, tinha medo de tudo, principalmente o entardescer, o marido levou a tudo que podia lhe dar esperanças de cura, lugares e pessoas, (depressão pós parto era desconhecida) médico, psiquiatra, benzedeira, curandeira, macumbeira, padre, pastor, no fim um farmacêutico a salvou dando-lhe fortificantes, vitaminas e calmantes.
Voltou para casa, recuperou a paz e alegria de viver, a filha feia estava com berne na boca e precisava ser cuidada, foi operada e aos poucos ia mudando da fisionomia primata para humana, com os cuidados da mãe e o paparico do pai, estava engordando e corando... não sabiam, mas seus olhos pretos e profundos iam lhe permitir olhares muito longínquos...
Música que mostra um pouco do que se tornou...
http://www.youtube.com/watch?v=hFJljUyEJ3c
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