quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Lágrimas de crocodilo




Era uma vez uma menina que não queria voltar de OZ, nem do País das Maravilhas, nem da Ilha do dia Anterior, nem da Terra do Nunca, nem do Guarda Roupa do reino do Leão... não queria ser real...
Mas em um de seus momentos oníricos encontrou com um sorriso de crocodilo... que ao se aproximar... muito muito perto... Começou a chorar... e a menina, em sua inocência consciente (pois sabia que era só sonho) perguntou:
- Por que choras? – com uma doçura excessiva.
- Porque é da minha natureza devora-la... (justificou) não posso evitar... mesmo que seus ossos machuquem o céu de minha boca... pressionando minha glândula lacrimal... devo cumprir o meu instinto...
Neste momento, para seu espanto a menina sentou-se em sua frente e esperou... ah! Era sonho, vinha em sua mente... de tantos que se repetem sem ferir... seu corpo...
O crocodilo, um tanto desconfiado, como é característico dos répteis que vivem se camuflando, começou a cheirá-la, e, vagarosamente morder seus dedos do pé... dando a ela uma sensação estranha... uma aflição interna...
- Tudo bem... são somente pés... eu posso viver sem eles aqui... posso flutuar... (tranquilizou-se), aqui eu posso tudo... é só um sonho...
Mas o sabor de seus pequenos dedos e pés só aguçou a fome do carnívoro... puxando-a com força... a fez deitar-se na grama molhada de orvalho... num gesto de reflexo a esse solavanco, ela segurou com força nas raízes... mas não queria evitar... mesmo que a situação não fosse mais tão confortável...
As lágrimas do animal se intensificaram e refletiam o luar escancarada no céu... a noite ia ficando cada vez mais clara e os dias cada vez mais soturno... acompanhava-as também uma brisa que vinha da lagoa de aguapés e taboas brincalhonas, fazendo-a iniciar um leve tremor... seus mamilos se intumesceram... nesse momento já estava sem pernas... como se fizesse diferença... já que em sonhos costumamos correr sem nos locomovermos no espaço... pernas de barata tonta... que não permitem que se vá muito longe, nem chegue muito perto... pernas estéreis e carregadas de heteronomia. Continuou sua antropofagia pelos braços... sem abraços... sem habilidades... sem liberdade... braços fornicadores... formigando a cada mordida...
Seus olhos estavam cada vez mais distantes daquele banquete, fixos nas lágrimas, no seu brilho, no seu fluxo, na falta de expressão do resto do corpo desengonçado do crocodilo... lágrimas são purificadoras, não pra ele... e mesmo sendo o prato principal... sentimentos misturados lhe viam... medo, dor, ressentimento, apego, desprezo, indiferença, entrega, era quem lhe queria no momento... o crocodilo e suas lágrimas naturais e frias... sem crueldade... sem a culpa dos hipócritas... apenas lágrimas. Contornou-a entregue ao tapete úmido que cercava a lagoa e, fazendo-a espremer seus olhos até arder... estilhaçou sua buceta... ingerindo seu sugo vaginal e intestinal de modo cada vez mais selvagem... o crocodilo queria logo acabar com aquele banquete... provavelmente tinha outras meninas a sua espera em outros sonhos (imaginou uma fila de meninas aos moldes de dominó e cartas de baralho, uma após a outra, num distanciamento cuidadoso, para que uma não toque a outra antes da hora de serem tombadas e o jogo ser reiniciado de outra forma)... parecia ter pressa... esquivando de seus olhos abismos...  mal aproveitou suas mamas, apesar da aparência de manga suculenta (queria carne, e essa estava se tornando um fardo)... foram trituradas em duas bocadas junto com o coração (que já carregava um prolapso da válvula mitral) e o pulmão (com brônquios comprometidos pela asma)... não se via sangue... tudo era sugado para não deixar vestígios de caça, assustaria outras presas... sua cabeça, agora de lado, numa expressão Dali, fitou os olhos do crocodilo pela última vez... antes ouviu-o exausto grunhir...
- Vou devorar a parte que mais presa, seus depósito de tolices que chamas de realidade, seu reservatório de sandices que chamas de sonho, sua caixa de armadilhas que chamas de sentimentos. Vou fazer um favor pra ti menina, um favor que apenas os grandes fazem... livra-la de si mesma... de suas invencionices... de suas cismas... de seus mimos... e acorda-la para a morte do dionisíaco... vamos matar essa maldito Baco, já que não foi possível descredibilizá-lo ou desmitificá-lo dessa sua demência.
Dito isso... mordeu sua cabeça pelos cabelos da nuca... eram muito lisos e quase escaparam de seus dentes... quando conseguiu prender a cabeça e rachar seu crânio... os olhos lhe saltaram da face... rodavam e giravam independentes e bailando seu negro profundo, contrastando com o verde... pararam vesgos frente a fera de dentes serrados... que com desdém, como se tivesse concluído sua messe... foi afastando-se de ré para o lago... deixaria aqueles olhos ali... para murcharem com o sol, ressecando-se enquanto as lágrimas do crocodilo secam em sua face em mosaico de pedra... figura pré-histórica... sob os olhos agora sem histórias. (a menina, cega, acorda e procura uma bengala para um novo dia).



Salvador Dalí
Study for the Dream Sequence in Spellbound  1945
© Salvador Dalí. Fundación Gala-Salvador Dalí, DACS, 2007
Oil on panel

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