O beijo roubado, Jean-Honoré
Foi doideira, definitivamente. Não era para ter acontecido, pelo menos não ainda, não dessa forma. Acordei com duas ressacas, alcoólica e moral. A primeira, duas aspirinas e um macerado de boldo resolveram. Além da responsabilidade conosco, de não nos machucarmos, temos a responsabilidade, e essa é que mais está me pesando, para com as pessoas que ficaram em casa, confiando na gente. Fiquei mal de verdade.
Estando certo o Pessoa, de que o poeta é um fingidor ou, no mínimo, um exagerado (aí é o Cazuza falando), nós estamos numa sinuca de bico. Nós dois somos poetas. Dá pra perceber a confusão, o caos que advirá disso?
Não sou nada fã do Rubem Alves, mas ganhei um livro dele, de crônicas, de uma colega de trabalho, que além de me comer também queria me tornar alguém mais afável, palavra dela o afável. Não conseguiu uma coisa nem outra(tá achando que eu sou fácil, é?). Mas nesse livro tem uma crônica em que ele faz uma metáfora muito interessante em relação ao poeta, que o poeta é uma poça de água barrenta, mas que reflete o céu. Uma armadilha, o poeta, portanto?
E mais, Moça, nós poetas somos auto-centrados, egocêntricos, mesquinhos, até. Quem diferente disso teria a pretensão de achar que o que ele pensa é merecedor de registro em papel, merecedor de ser compartilhado pelo mundo?
Tomemos muito cuidado com o que nossas cabeças de poeta estão aprontando com a gente. As pessoas que estão conosco não são poetas, não têm culpa, não podem ser as principais penalizadas. Pensemos muito nisso, Moça.
Mas como sou poeta, mesquinho, exibicionista, não resisto em mandar mais uns poemas(?) versando, tergiversando justamente desse assunto.
EXAGERADO
Imagine as coisas que eu escreveria
Se realmente penasse
As agruras que digo que sinto.
Imagine os horrores descritos
Se em verdade sangrasse
As feridas que em mim maquio.
Imagine as barbaridades que de minha pena estuporariam
Caso, de fato, me acercassem
Todas as desgraças e azares que invento.
Imagine as temeridades que abortariam de minha esferográfica
Se a cólica de rins tão alardeada
Não fosse, enfim, somente unha podre e encravada.
Imagine as atrocidades que minha caneta cometeria
Se o que eu sofro não fosse somente o que eu minto
Se em vez dessa pálida vodka de mercearia
Eu dispusesse da verde aurora boreal do absinto.
A INVEJA DO POETA
“Sabe” – abordou-me, levitando em seu pedestal, uma escultura de mulher -,
“A sua poesia me trouxe arfares, suores, fulgores,
Catalisou a minha libido”.
Calou. Ficou a me fitar. Aguardando-me.
E eu,
Inepto que sempre fui em possuir tais marmóreas mulheres,
Retribuí-lhe com a única coisa que podia ser dita:
“Que inveja eu tenho da minha poesia!”
ARQUITETO DA MENTIRA
Perdoem a cara-de-pau,
O sem-rumo dessa nau,
O sem-norte desse escaler,
Mas preciso escrever.
Escrever a todo momento,
Mesmo que seja disparatada besteira
Ou me racha a moleira
As idéias que surgem aqui dentro.
Por isso, perdoem-me as amadas
Abandonadas pra se tornarem 2 ou 3 poemas:
Escrevo ou morro com a seiva estagnada
Em meu floema.
Escrevo, escravo da pena,
Qualquer absurdo, música pra surdo,
Pornografias às dezenas.
Por isso, perdoem-me os que foram alvo de minha ira
Das minhas tramas, do meu caráter de mosaico.
Se não arquiteto minhas linhas de mentira
Desabo qual murcho saco.
E pode ser, e é até bom que seja,
Qualquer asneira,
Qualquer bobeira, uma “tirada” malfazeja.
A escrita me salva e põe minha cabeça numa bandeja.
Por isso, perdoem-me os amigos que há anos persigo
E que mantenho sob a minha ditadura.
Preciso da tinta que me mandam pelo umbigo
Com a qual crio rabiscos e emigro da loucura.
E pode ser, e geralmente o é,
Uma tolice,
Uma sandice sem cabeça nem pé :
A escrita é minha descrença e minha Sé.
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O Natal será na casa da família, devemos ficar por lá até quarta ou quinta-feira.
Bom Natal para você "Dona" Moça e para todos os que lhe são caros.
Beijão, Moço.
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