segunda-feira, 14 de junho de 2010

A FERA NA SELVA - Leitura Dramática - X Feira do Livro de RPO




«Alguma coisa teria dado origem à fala que o sobressaltou no decurso daquele encontro. O quê não importa: talvez meia dúzia de palavras partidas dele próprio sem premeditação especial – ditas quando, ao fim de um lento percurso, se aproximaram e reataram conhecimento.»

A Fera na Selva, Henry James

John Marcher reencontra May Bartram, a mulher a quem, dez anos antes, havia confessado o grande segredo da sua vida. Um segredo próximo de uma missão ou um desígnio, «uma certeza profundíssima, uma sensação de estar destinado a qualquer coisa rara e estranha, que mais tarde ou mais cedo viria ao seu encontro». O acontecimento que iria mudar a sua vida para sempre. Neste singular reencontro, os mundos de May e John colidem num reconhecimento trágico: é May quem ressurge da memória e lhe relembra a confissão deste segredo, falha definitivamente trágica na biografia de John Marcher, assim como é May quem, tacitamente, se compromete a aguardar ao lado de John até que este «desígnio dos Deuses» se cumpra. Esta espécie de jogo, matrimónio sustentado pela «certeza profundíssima» de um porvir, arrasta-se ao longo de uma vida inteira, temperada pela aridez da espera, pelo cansaço e pelo desgaste de May, uma «parente pobre» na vida de John, um sustentáculo que abriga a fragilidade e o medo do homem perante a sua própria solidão. Esta aliança fatal tem a duração de uma vida. Mas, quando a vida começa, lentamente, a despedir-se dos corpos que a abrigaram, quanto tempo faltará para esperar? Será que já aconteceu o mais importante? A Fera deu o salto na Selva, simples e silenciosamente demais perante um ego tão estrondoso e exigente?

Henry James, o autor deste romance/novela, escreve num tempo de grandes mudanças e é impossível atribuir-lhe uma classificação perante a modernidade e a singularidade da sua escrita. Um realismo muito cruel, do ponto de vista do seu próprio tempo, mas também do ponto de vista do trabalho das personagens – um realismo psicológico? Um realismo impressionista, na descrição mais sensitiva dos universos interiores de May e John? Um realismo já expressionista, por quanto nos aumenta e alarga a perspectiva de duas vidas e, no seu modo trágico, as distorce e expande aos olhos do leitor?

A Fera na Selva traz-nos de novo o paradigma dos encontros fatais, com hora e data marcada, nos papéis de duas personagens que, muito mais do que personagens, são verdadeiros arquétipos da condição humana naquilo que representam enquanto seres expostos à revelação do desígnio das suas próprias vidas. Um narrador omnisciente (com função de coro imparcial e moralizador) convida-nos a espreitar sobre o seu ombro e a mergulharmos na profundidade do interior de May e John. Enquanto leitores, somos convidados a experimentar, passo a passo, o evoluir de duas vidas. «Espreitar pela fechadura» não seria suficiente para definir este realismo de Henry James, pois somos levados muito mais longe à procura das chaves que abrem as portas para o acontecimento seguinte. E, como numa boa tragédia, as portas só se abrem no fim, uma por uma, deixando que a iluminação deslize suavemente pela corrente de ar como uma necessidade ao Homem. O leitor é assoberbado pelo sentimento trágico, revisitando o seu próprio caminho vital perante a compaixão que sente pelo herói John Marcher. A leitura deste romance é, portanto, como uma seta em três tempos: apresenta-se, trespassa-nos e, finalmente, relativiza-nos. Se, num primeiro momento do romance, somos leitores distanciados do texto, observadores da dita fechadura, subtilmente passamos a apropriarmo-nos do texto até, finalmente, sê-lo por inteiro. Da ratio para o pathos, da manifestação lúdica para a transformação e enriquecimento humano. Um texto de uma leitura entusiasmante, do ponto de vista da escrita, mas também do próprio conteúdo.
Muito mais do que uma marcha dos heróis pelos factos e pela desgraça, A Fera na Selva é um percurso pela tragédia do interior, aquela dos sentimentos e das certezas, das esperas, das necessidades, aquela que no fim perguntará sempre se é possível voltar atrás. Na ficção, sim…

QUANDO FUI ASSISTIR À LEITURA DRAMÁTICA DA ADAPTAÇÃO DESTA OBRA, INTERPRETADA POR PAULO BETTI E ELIANE GIARDINI, NUMA TARDE TUMULTUADA DE SÁBADO, NÃO TINHA NOÇÃO QUE ESSA EXPERIÊNCIA SERIA TÃO FORTE... SÓ CONHECIA OS ATORES, NÃO CONHECIA NEM A OBRA E MUITO MENOS SUA RELEITURA PARA O CINEMA OU TEATRO, MAS FIQUEI ABSORTA, FUI TOMADA POR UMA SENSAÇÃO ABSURDA DO MECANICISMO DAS RELAÇÕES INSANAS DA ESPERA, ESPERA POR ALGO, A VIDA NUM PASSADO, A VIDA NUM FUTURO, E A AUSÊNCIA DELA NO PRESENTE, PELO MENOS DA PERCEPÇÃO DELA... DEPOIS DA DISCUSSÃO COM OS ATORES CAMINHEI ATÉ O RESTANTE DO TEMPO DO TRABALHO TENTANDO DAR SENTIDO AQUELA DURAÇÃO... MEMÓRIA... DAQUILO QUE NUNCA É TOTALMENTE O AGORA... PRODUZINDO-SE A PARTIR DE PEDAÇOS DE EXISTÊNCIA NÃO VIVIDA, PARA SE TRANSFORMAR EM DOR POR QUERER VIVER.

Nenhum comentário:

Postar um comentário