sábado, 13 de março de 2010

Artigo inteligente


1. A insustentável leveza do ser-trabalhador na pós-modernidade


Jogar com os sentimentos de insegurança
e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de
dominação política
Zygmunt Bauman


Alguns filmes são muito significativos. Em O Grande Ditador (1940), há uma cena de Chaplin brincando com o mundo que transforma em leveza a personificação contemporânea da banalidade do mal. Ali, no entanto, não estava um ditador, mas o gênio de Chaplin. Ditadores não têm graça. A cena ironiza a visão totalitária do mundo que, no seu exagero, pode ser entendida como versão revisitada do mito grego de Atlas – livre do castigo eterno de carregar o mundo por tentar roubar o poder supremo dos deuses e capaz de alterar os movimentos da Terra de acordo com seus desejos.
O filme foi lançado no mesmo ano da criação de Auschwitz. Lugar que, no seu pórtico de entrada, em letras de ferro, anunciava com solenidade perversa: o trabalho liberta. Imagem brutal do que a consciência é capaz de fazer para justificar o horror. Brutalidade tão avassaladora que para Adorno, de acordo com Abécassis (1999), depois de Auschwitz não há porque fazer poesia.
Como puderam fazer aquilo? A pergunta reverbera até hoje.
Chaplin ridicularizou as ambições totalitárias[1] – uma das características do admirável mundo novo[2]. Subliminarmente, utilizou como metáfora a experiência de peso e leveza, desde sempre presentes na nossa relação com o mundo. Metáfora que retomaremos neste trabalho.
Outra cena significativa é a do documentário The Corporation (2003), no qual um corretor da Bolsa de Nova Iorque, perguntado sobre seu primeiro pensamento ao saber da explosão das torres gêmeas, responde nitidamente excitado: o ouro vai subir muito!
Por que aproximar estas cenas? Os filmes refletem regimes sociais e épocas bem diferentes. O mundo se transformou bastante nestes 60 anos. Mas em que sentido?
A realidade social parece confirmar os piores prognósticos: o “admirável mundo novo” de Aldous Huxley parece se impor; ou, talvez o pior, confirma-se o imaginado por George Orwell em sua obra 1984. Não necessariamente através da imposição de um Estado Totalitário, mas pelo absolutismo de mercado que controla todas as esferas da sociedade, impondo o pensamento único e desenvolvendo formas de controle da privacidade, como por exemplo, os mecanismos de rastreamento e definidores de perfis de usuários utilizados por empresas comerciais via Internet (Silva, 2004).
Adorno (1986) percebeu na civilização moderna o progresso regressivo, expressão utilizada para traduzir a natureza paradoxal de um progresso que carrega a semente da barbárie.
As cenas dos dois filmes retratam a banalização da indiferença, do sofrimento e do mal. O Grande Ditador personifica um regime totalitário. O corretor, um sujeitado agente de uma engrenagem central do capitalismo moderno. Ambos funcionam na racionalidade de um pensamento único – a dominação de corações e mentes.
O capitalismo globalizante, que apelidamos Capital Total, é herdeiro e indutor de uma visão totalitária do mundo, avessa à interlocução e que exclui quem não comunga das mesmas convicções. Totalitarismo e Capital Total compartilham uma racionalidade da dominação que aqui chamaremos capitotalitarismo.
A banalização do mal é uma das características marcantes do admirável mundo novo (Dejours, 1999a). Banalização viabilizada por um processo de negação e racionalização de pensamentos e sentimentos. Os sentimentos são negados para confortar e justificar à consciência atos que causam sofrimento podendo chegar ao extremo da morte. Desta forma, o que poderia ser um peso na consciência é transmutado em algo aparentemente leve.
Quais as influências deste cenário para as pessoas no admirável mundo novo do trabalho? Nosso percurso neste tema se vale, como referência inicial, da metáfora do peso-leveza.
Os conceitos serão emprestados de A insustentável leveza do ser (Kundera, 1993) e das reflexões de Calvino (1990, p. 19), acerca daquela obra:
Muito dificilmente um romancista poderá representar sua idéia da leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida contemporânea, sem condená-la a ser um objeto inalcançável de uma busca sem fim. (...) O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão; a intrincada rede de constrições públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas.
A partir desta perspectiva, consideramos que o peso da vida pode ser associado, por exemplo, a sofrimento, tristeza, adoecimento, desigualdade, injustiça, humilhação, entre outros. A leveza pode ser relacionada com prazer, alegria, vivacidade, saúde, felicidade e com os valores da modernidade – liberdade, igualdade, autonomia, subjetividade, justiça, solidariedade.
De acordo com Kundera (1993), Nietzsche associa o peso da existência ao mito do eterno retorno, considerado por ele como “o mais pesado dos fardos”. Para Kundera (1993, p. 11), “no mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza".
Podemos dizer que o eterno retorno estabelece ressonâncias com o mito de Sísifo, em sua vertente comumente associada às repetições sem sentido e alienadas, às existências aprisionadas em ciclos imutáveis.
Os elementos até aqui reunidos nos oferecem boas pistas para refletirmos sobre as influências da dimensão social no processo saúde-adoecimento no trabalho. A procura da leveza na pós-modernidade estaria condenada a uma busca sem fim? A rede de constrições públicas e privadas aprisionaria cada existência em malhas cada vez mais cerradas?

Tudo o que é sólido desmancha no ar

O que é pós-modernidade? O tema demandaria considerações e análises extensas, começando por distinções entre modernidade e pós-modernidade, o que ultrapassa o objetivo deste estudo. O marco da pós-modernidade, considerado neste trabalho, é situado por Jameson (2002, p. 27):
Os últimos anos têm sido marcados por um milenarismo invertido segundo o qual os prognósticos, catastróficos ou redencionistas a respeito do futuro foram substituídos por decretos sobre o fim disto ou daquilo (o fim da ideologia, da arte, ou das classes sociais; a "crise" do leninismo, da social-democracia, ou do Estado do bem-estar, etc.); em conjunto, é possível que tudo isso configure o que se denomina, cada vez mais frequentemente, pós-modernismo. O argumento em favor de sua existência apóia-se na hipótese de uma quebra radical, ou coupure, cujas origens geralmente remontam ao fim dos anos 50 e começo dos anos 60.
A pós-modernidade, ressaltamos, está situada em um contexto mais amplo de transformações, iniciadas antes dos anos 50, o que nos remete ao pensamento de Habermas. Ao discutir a temática, Freitag (2003) resgata o pensamento do filósofo para compreender as estruturas e patologias das sociedades pós-modernas, o autor elaborou uma teoria a partir da leitura dos processos históricos dos últimos três séculos. A Teoria da Modernidade, por ele proposta, foi desenvolvida com base na análise crítica da obra e recortes de diversos intérpretes da modernidade. Isso possibilita uma compreensão da modernidade como resultado das transformações societárias ocorridas nos séculos 18, 19 e 20, associadas aos eventos surgidos na Europa, que se disseminaram para diversos países: a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Habermas incluiu também no contexto da modernidade as sociedades de classe do capitalismo (liberal e tardio) e as sociedades de classe do socialismo de estado.
As concepções muito diversas das sociedades de classe do socialismo de estado e o marxismo configuraram um contraponto ao capitalismo. De acordo com Santos (1999a), uma das narrativas centrais da modernidade no século 20 foi a simetria antagônica da solidez do capitalismo e do marxismo e as estratégias de cada um deles para dissolver o outro no ar. Com a expressão tudo o que é sólido desmancha no ar, Marx e Engels trabalharam a imagem dinâmica do caráter revolucionário das transformações produzidas pela modernidade e pelo capitalismo nos diferentes setores da vida social. De acordo com o autor:
O âmbito, o ritmo e a intensidade de tais transformações abalaram modos de vida ancestrais, processos de regulação econômica, social e política – tidas como naturais de tão confirmadas histórica e vivencialmente – de forma que a sociedade do século 19 parecia perder toda a sua solidez, evaporada, juntamente com seus fundamentos (Santos, 1999a, p. 23-24).
A expressão Tudo o que é sólido desmancha no ar pode ser entendida como síntese da modernidade, pois no lugar da "coesão social fundada na moral cristã-medieval, dos espaços territoriais bem definidos, de uma compreensão estática e perene do tempo, a força dos sentimentos e dos vínculos pessoais etc., a modernidade impõe a insegurança das incertezas" (Silva, 2004).
Encontramos aqui – no paradoxal e plástico movimento de tudo o que é sólido desmancha no ar – a utilização dos conceitos de solidez (peso) e desmanchar no ar (leveza) para ilustrar a dinâmica revolucionária das transformações modernas. Também apoiada nos conceitos de peso e leveza, mas utilizada em sentido mais concreto e dialeticamente inverso ao de Kundera.
Retomando a breve exposição sobre a modernidade, ainda com Habermas, vemos que os subsistemas da economia e da política regulam as trocas com outros subsistemas sociais através do dinheiro e do poder. A conseqüente monetarização da força de trabalho e a burocratização da vida acarretam a destruição violenta das formas de interação tradicionais.
Quais seriam as conseqüências disso para o modo de existir na pós-modernidade e para o mundo do trabalho?

Patologias sociais do admirável mundo novo

O modelo produtivo da modernidade afeta significativamente o mundo do trabalho. Habermas denominou estes efeitos como patologias da modernidade, identificadas nos processos de dissociação e racionalização(Freitag, 2003).
dissociação refere-se à percepção dos processos sociais da vida cotidiana desconectados do sistema produtivo. A economia e o poder assumem o caráter de uma realidade naturalizada e regida por leis imutáveis. As pessoas percebem como natural a submissão às leis do mercado e à burocracia estatal, contra as quais nada há a fazer. Essa apatia reforça as tendências à dissociação, permitindo que a economia e o Estado sejam controlados por uma mino ria.
A segunda patologia decorre da primeira. A racionalização refere-se ao processo de transformação institucional decorrente de uma racionalidade instrumental. Com o fortalecimento do modelo de produção, impõem-se aos processos sociais as "regras do jogo", cujo princípio fundamental é o da eficácia como um fim em si mesmo, com um mínimo de custo e o máximo de benefícios para o poder instituído.
De acordo com Dejours (1999a), Habermas também identificou uma terceira patologia: patologia da comunicação referente às dificuldades e distorções criadas nesse contexto para a enunciação e confronto das opiniões que possam representar ameaças ao modelo vigente.
A compreensão de Habermas, no entanto, na crítica de Antunes (2004), não inclui as transformações mais recentes do mundo do trabalho: a vigência do trabalho abstrato, a fetichização do mundo das mercadorias e a crescente reificação da esfera comunicacional.
O autor, de certa forma, nos leva a refletir sobre o alcance destas recentes transformações, que poderiam até se configurar como novas patologias sociais.
Com base nesta ponderação, nos propomos a identificar algumas características da pós-modernidade que possam sinalizar a existência destas novas patologias. Para isso, recorremos a autores que destacam aspectos desta dinâmica que amplificam as patologias anteriormente descritas.
Ao final desta parte, destacaremos as patologias sociais que serão abordadas neste estudo: sobrecarga de trabalho, violência e servidão voluntária.
Na mesma trilha de Habermas, Dejours (1999a) identifica a submissão do trabalho à racionalidade instrumental e reflete acerca da origem e dos inúmeros desdobramentos desta racionalidade no mundo do trabalho contemporâneo.
Especialmente a partir de 1980, vivenciamos transformações qualitativas sem precedentes na história. A razão econômica sobrepõe-se à razão política. A racionalidade instrumental é propagada como única saída para a ideologia da guerra econômica, que precisa ser vencida para garantir a sobrevivência da nação e a liberdade, o que leva a pensar que a causa é justa, que o fim justifica os meios.
Exacerba-se, assim, a afirmação de um pensamento único, evidenciada nas posições de Fukuyama[3], que ganhou celebridade instantânea e chegou a ser incensado como guru espetacular do Capitalismo Total ao decretar o fim da história.
O pensamento único não reconhece o diferente e, neste sentido, se aproxima de uma visão totalitária.
Para Calligaris (1991), os princípios subliminares de nossa sociedade são ditatoriais e totalitários. Princípios exibidos como democráticos e voltados para o interesse coletivo, mas que dissimulam o pensamento único do “capitotalitarismo”.
As propagandas de liberdade e igualdade de direitos e oportunidades constantemente enaltecem a "avançada democracia capitalista". O acesso à identidade, no entanto, só é possível para quem tem capacidade de consumo (Santos, 1999b e Alvim, 2006).
Esta lógica produz diversas conseqüências. Os métodos de gestão – de forma mais ou menos explícita e com maior ou menor grau de sofisticação ou perversidade – se contrapõem às conquistas sociais e ao Direito do Trabalho. Brutalidades nas relações trabalhistas são denunciadas com poucas conseqüências.
A manipulação da ameaça como estratégia gerencial, que se utiliza do medo e do sofrimento no ambiente de trabalho, é um dos mais perversos e freqüentes instrumentos na gestão das empresas. Ameaças de exclusão geram medo da incompetência, atenuam reações de indignação diante da sobrecarga de trabalho, do sofrimento, adversidade, injustiça – que contribuem para a precarização do emprego.
Os acidentes de trabalho e as deficiências das organizações tendem a ser atribuídos primordialmente às pessoas. O sofrimento no trabalho é ignorado, oculto atrás das vitrines do progresso. Em decorrência, instaura-se uma passividade coletiva ligada à falta de alternativas (Dejours, 1999a). Passividade coletiva que se manifesta numa espécie de silenciosa resignação e servidão consentida.
Estas práticas dão forma às inúmeras ideologias atreladas a um modelo produtivo que só se reconhece na lógica da dominação e da competitividade.
No filme The Corporation (2003) são explicitadas as práticas frias, calculistas e impessoais das organizações modernas, submetidas e ao mesmo tempo mentoras da racionalidade instrumental que leva à negação das responsabilidades em relação aos sofrimentos e ao mal que causam aos outros.
Em The Matrix (1999), o modelo produtivo dominante é representado de forma metafórica. A Matrix é "análoga à ideologia no sentido pós-moderno, para estruturar o mundo, cria a própria 'realidade' que nos rodeia em razão da nossa dependência não só de regras, mas também da linguagem" (Felluga, 2003, p. 90).
Podemos ver nestes filmes, assim como em Blade Runner (1982) e Dogville (2003), versões pós-modernas das absurdas e pesadas alegorias kafkianas – limitam a liberdade, produzem submissão à lógica cega de um ambiente de controle, opressão burocrática, alienação e servidão voluntária.
Essas ideologias refletem um cenário maior marcado por turbulências nas dimensões social, política e cultural que incidem sobre os pressupostos do contrato social atual. Há uma crescente fragmentação da sociedade, dividida em múltiplos apartheids, polarizada ao longo dos eixos econômicos, sociais, políticos e culturais. A luta pelo bem comum e suas definições alternativas perdem sentido. A vontade geral parece ter-se transformado em uma proposição absurda (Santos, 1999b).
O autor destaca a sobrecarga simbólica dos valores da modernidade – liberdade, igualdade, autonomia e subjetividade, justiça, solidariedade – que passam a ter significados cada vez mais distintos para pessoas ou grupos sociais diferentes, de modo que o excesso de sentido se transforma em paralisia e neutralização. Essa turbulência leva ao desaparecimento do tempo e espaço neutros, lineares e homogêneos na vida cotidiana e nas relações sociais, que se incorporam à nossa percepção dos fenômenos, conflitos e relações.
Em conseqüência disso, cria-se estranhamento, desfamiliarização, surpresa, perplexidade, invisibilização e silêncio. A violência urbana e seus derivados nas relações pessoais e de trabalho seriam exemplos paradigmáticos desta turbulência de escalas que nos remetem a um estado de iminente e imprevisível explosão dos conflitos.
Estas questões se refletem diretamente na discussão do contrato social. Alcançamos o ponto crítico da crise da contratualização moderna: a predominância dos processos de exclusão sobre os de inclusão.
Configura-se assim uma crise designada por alguns como desmodernização ou contramodernização. O trabalho vai deixando de sustentar a cidadania e vice-versa, perde o papel de produto e produtor da cidadania e reduz-se a um "pesado fardo".
Assim, o trabalho, apesar de estar cada vez mais presente na vida das pessoas, vai desaparecendo das referências éticas que sustentam a autonomia e auto-estima dos trabalhadores (Santos, 1999b).
Crise global também descrita por Heller (1999), que vê a modernidade como grande possibilidade e, ao mesmo tempo, um grande ônus, na medida em que dificulta a adaptação dos seres humanos que, com pouca clareza dos resultados das suas ações, são induzidos à enfermidade moderna da deficiência de significado.
Deficiência de significado que também podemos encontrar na análise de Vandenberghe (2004). A pós-industrialização é vista como indutora do desenraizamento das instituições com empregos perenes e como espectro do duradouro e massivo desemprego estrutural. Diante deste cenário, o pleno emprego seria possível apenas em um processo de "brasilianização" forçada do Ocidente[4].
Os elementos descritos até aqui podem ser entendidos como produtores das patologias do peso da modernidade e se propagam diretamente no mundo do trabalho. Influenciam modos de pensar e sentir, comportamentos, identidades, a organização do trabalho e poderiam se configurar como novas patologias, desenvolvidas no grande – e muitas vezes invisível – caldo de cultura da matriz-pensamento-único docapitotalistarismo: predominância dos processos de exclusão, deficiência de significado, sobrecarga simbólica que leva à paralisia, passividade coletiva, acesso à liberdade e identidade via capacidade de consumo, manipulação da ameaça, exacerbação dos fins que justificam os meios.
Nesta perspectiva, Mendes (2007) identificou patologias sociais da sobrecarga no trabalho, violência e servidão voluntária no mundo do trabalho.
Consideramos que, numa dialética perversa e interminável, tais patologias reforçam os comportamentos que lhes deram origem, como as patologias da modernidade anteriormente descritas.
Essas patologias sociais resultam do contínuo embate das pessoas com seus ambientes de trabalho. A impossibilidade de lidar com as adversidades e o sofrimento – decorrentes da organização do trabalho – pode levar à anestesia e à insensibilidade ao próprio sofrimento e ao dos outros, processo que pode se intensificar a ponto de ser compartilhado pelo grupo.
A sobrecarga decorre de uma carga de trabalho além da capacidade das pessoas. As ideologias da excelência e do desempenho, fortalecidas no contexto de precarização do emprego, reforçam esta patologia. A necessidade de reconhecimento pode se transformar numa busca patológica por um reconhecimento que aplaque minimamente a sensação de desamparo diariamente reforçada para os trabalhadores.
A servidão voluntária tem origem na filosofia de La Boëtie (2001) e, na sua versão pós-moderna, relaciona-se às necessidades de emprego e de conforto. Encontra terreno fértil nas organizações do trabalho que acentuam a convivência estratégica baseada em interesses para crescer na empresa, em função da cultura do desempenho e não da solidariedade, confiança e coletivo de trabalho. As relações são basicamente de conformismo e a pessoas escondem o sofrimento para não se tornarem dissonantes do contexto.
A perversão nos laços sociais produz sujeitos aprisionados em comportamentos de se fazer instrumento e alienar o seu desejo na vontade do outro (Calligaris, 1991; Martins, 2005). Essa vontade do outro, na visão do nosso estudo é personificada na organização do trabalho que se configura, dessa forma, como reforçadora da patologia social da servidão voluntária.
A violência relaciona-se à agressividade contra si mesmo, os outros e o patrimônio. As manifestações destes atos podem ser encontradas no vandalismo, na sabotagem, no assédio moral e nas tentativas e/ou suicídio. Manifesta-se quando as relações subjetivas com o trabalho se deterioram, o que torna o trabalho sem sentido. As relações de solidariedade se diluem e o sofrimento se faz mais intenso. Ocorre diante de situações de estresse e da insensibilidade ao seu sofrimento e das demais pessoas. Resulta da dominação social no trabalho que pode levar à solidão, abandono e desolação.
Estes elementos da pós-modernidade desenham um cenário de influências significativas para a constituição da identidade e, por conseqüência, da saúde mental das pessoas no trabalho. Os efeitos deste cenário da modernidade sobre a saúde só recentemente começaram a ser pesquisados (Ferreira e Mendes, 2003).
O cenário futuro não se mostra favorável. Estudos realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que as perspectivas para os próximos vinte anos são pessimistas quanto ao impacto das novas políticas de gestão da organização do trabalho na saúde mental dos trabalhadores. As pesquisas sinalizam o predomínio das depressões, estresse, angústias e outros danos psíquicos (Blanch, 2005).
A seguir ampliamos a caracterização da violência e do assédio moral no trabalho, tendo em vista que a demanda para este estudo enfatizou estas patologias sociais.

Violência no trabalho como patologia social

Ar irrespirável, a violência institui um princípio de crueldade, lançando suas vítimas no mais completo desamparo. Penetra nos poros. Produz anteparos. Muitas vezes não há o que dizer, não há o que pensar, não há o que imaginar. Resta um silêncio inquietante (Sousa e Tessler, 2004).
A violência no trabalho pode ser caracterizada por “todas as formas de comportamento agressivo, abusivo que possam causar dano físico, psicológico ou desconforto em suas vítimas, sejam estas alvos intencionais ou envolvidos impessoais ou incidentais” (OIT, 2003).
A violência no trabalho está muito além das agressões físicas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2003), com base em estudo realizado em 36 países, concluiu que a agressão psicológica - entendida como intimidação e perseguição sem contato físico - é a forma mais grave de violência. A violência no ambiente de trabalho tem aumentado no mundo. Argentina, Canadá, França, Inglaterra e Romênia são os países com mais registros. O risco é maior para professores, no trabalho social, na enfermagem, nos bancos e no comércio.
Quais são as manifestações da violência no trabalho? De acordo com relação elaborada por Chappell & Di Martinno (2000), em trabalho da OIT, a violência no trabalho se manifesta nos seguintes atos: agressão física, interferência nos trabalhos, ameaça, intimidação, assédio moral (incluindo sexual ou racial), mensagem agressiva, ofensa, comportamento hostil, isolamento, perseguição por grupos (bullying), estupro, extorsão, postura agressiva, gesto rude, provocação (mobbing), grito, roubo, homicídio, silêncio deliberado, insinuação, xingamento e outros.
Os atos de violência pontuam com linha áspera o esgarçado tecido da história. Neste sentido, surpreende que poucas vezes o tema seja escolhido como objeto de estudo, especialmente porque vem se tornando matéria de grande repercussão, cada vez mais presente no âmbito social e também nas organizações.
Talvez não seja possível conceituar violência, mas violências. A complexidade do tema, suas múltiplas causas, especificidades e situações constituem dificuldades para se alcançar definições consensuais. O termo tem sido usado em situações muito diversas: violência do Estado, violência da mídia, violência da exclusão social, violência dos atos criminosos, violência do e no trabalho, violência na infância, violência contra a mulher, violência dos pequenos gestos (Minayo e Souza, 1998; Souza, 2005).
Filósofos e cientistas sempre se debruçaram sobre a violência, visando explicá-la, combatê-la e até mesmo justificá-la. Até hoje existe uma forte tendência de associar a violência a fatores biológicos, concepções religiosas, doença mental, arbítrio dos sujeitos, questões genéticas e de hereditariedade, sendo poucos os autores que a estudam no âmbito social e em sua processualidade histórica (Barreto, 2005, p. 24).
Aqui podemos perceber nuances ideológicas na filiação ao entendimento da violência como comportamento resultante de “determinações instintivas”, desvinculadas do contexto social no qual ocorre.
Aceitar que a violência possa ser naturalizada é uma tentativa de diluir o terror que ela provoca, de se submeter aos seus efeitos, e de não se implicar com as possibilidades, mesmo pequenas, de sua transformação (Souza, 2005).
Um olhar crítico e descolado desta visão naturalizada pode nos sinalizar que a violência, na sua dinâmica dialética, reflete uma diferença transformada em desigualdade, uma forma de dominação, de não-reconhecimento do outro. Um processo de coisificação que subtrai das pessoas a sua condição humana, o que faz da imposição do silêncio um ato de violência (Chauí, 1984, conforme Barreto, 2005).
A violência, conforme discutido por Minayo (1994, p. 9) é uma “contraposição à tolerância, ao diálogo, ao reconhecimento e à civilização, como mostram Hegel (1980), Freud (1974), Habermas (1980), Sartre (1980)”.
A compreensão da violência inserida e decorrente do social sugere que deve ser analisada em rede, "suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável" (Domenach, 1981, p. 40).
Situações que se aproximam do que Foucault (1987) denominou de submissão sem consciência e sem reação ao abuso psíquico ou social.
Violência naturalizada no discurso da competência e da excelência, caracterizando o que Guimarães (2003) denominou “violência da calma”, indutora da servidão voluntária. Sato e Schmidt (2004) consideram aviolência da calma sintônica com o que Dejours (1987) chama de ideologia da vergonha, que esconde o estar doente e faz suportar a adversidade do trabalho em nome do "corpo útil ao trabalho útil".
Hoje, o discurso da competência, expresso, por exemplo, em revistas vendidas em bancas de jornal, como a Você S.A., dentre outras, se põe a serviço da violência da calma, dando "dicas" sobre como sobreviver nesse mundo competitivo, prescrevendo desde cursos e MBAs até modos de apresentação pública por ocasião de uma entrevista de seleção para o emprego. Mesmo nos momentos de lazer, dizem essas revistas, deve-se buscar a atualização profissional. O lazer, afinal, pode, também, ser capitalizado para o trabalho (Guimarães, 2003).

As ponderações anteriores nos levam a pensar a violência no contexto da pós-modernidade – marcado pela racionalidade econômica e instrumental e por patologias sociais – como instrumento das relações de dominação na organização do trabalho que marcam a experiência da subjetividade, indissociável dos seus laços sociais.
Nesta perspectiva, Minayo (1994) identifica as imposições contra as pessoas originadas na organização do trabalho como violência estrutural, que causam desconforto, sofrimento, desgaste, fadiga, adoecimento e até mesmo a morte. Essas imposições têm efeito direto nas relações de trabalho, como observa Dejours (1999b, p. 11):
Quando as comunicações no trabalho são bloqueadas, quando o silêncio se impõe ou a mentira impera, quando não há espaço para discutir abertamente o que acontece nos locais de trabalho, a situação se deteriora e o sofrimento humano assume formas incontroláveis, que vão desde o puro cinismo até as manifestações de violência individual e social.
O autor posteriormente, no artigo Violence ou domination (1999c), faz uma distinção entre violência e dominação nas relações de trabalho inseridas no modelo neoliberal. Nesse estudo, diferencia a dominação sutil da violência decorrentes da organização do trabalho, proposição que introduz mais um elemento de análise à dinâmica violência-dominação e amplia a compreensão descrita em A banalização da injustiça social (1999a). Nesta obra, valendo-se das reflexões de Arendt (1998) sobre a banalização do mal, o autor identificou uma racionalidade semelhante na utilização da violência nos regimes totalitários e no sistema neoliberal. No neoliberalismo, o lucro e o poderio econômico são, em ultima instância, o objetivo visado. No totalitarismo, a ordem e a dominação social. Nos dois regimes, a violência é utilizada como instrumento para a manutenção de suas respectivas ideologias e, não só foi banalizada, mas percebida como resultado de um complexo processo de sublimação.
No artigo Violence ou domination (1999c), o autor propõe os instrumentos de dominação das empresas não passam pela violência, mas pela indução da tolerância à injustiça e ao sofrimento, que, de certa forma, previne o aumento da violência no trabalho. Esses instrumentos não-violentos são reforçados por sofisticados processos de comunicação interna e externa das empresas, baseadas nos princípios da "distorção comunicacional". Essa distorção seria determinante na dominação simbólica que, não somente é não-violenta, como contribui para a contenção da violência nos locais de trabalho. Desta forma, as manifestações de violência costumam ser explicitamente “condenadas” pelas organizações de trabalho. Nisso, a eficácia desses métodos de gerenciamento seria mais da perversão que da violência, o que cria uma situação paradoxal: a responsabilidade moral e jurídica recai sobre aqueles que cometem atos violentos e não sobre os que fazem funcionar o sistema. Em última instância, com a dominação simbólica da racionalidade econômica e seus estilos de gerenciamento a imputação de responsabilidade da origem da violência não pode ser “retroagida”. Aqueles que cometem atos de violência no trabalho passam por culpados e não por vítimas.
Em nosso entendimento, esses métodos de gerenciamento mais perversos do que violentos, operam, em última instância, um encobrimento das situações de dominação. Essas situações podem se traduzir em violências decorrentes de ações ou omissões das próprias organizações.
Violência e silêncio. Silêncio e violência. Ressonâncias de simbólicas rimas perversas de relações dialeticamente imbricadas. Lançam as pessoas numa espiral de patologias e sintomas que se retroalimentam.
Violência como imposição do silêncio, negação da palavra e do outro. Silêncio como manifestação da violência, dinâmica que, em nosso entendimento, se insere na patologia social da violência anteriormente descrita, por Mendes (2007).
Uma das formas mais significativas e sutis de violência no trabalho é o assédio moral, descrito a seguir.

Assédio moral: patologia da solidão e silêncio

O assédio moral é uma patologia da solidão (Hirigoyen, 2002; Dejours, 2004a). Representa um expressivo risco laboral e de desgaste psicossocial. Nos países socialmente mais avançados, os indicadores sinalizam a importância do tema do ponto de vista social, político, jurídico, cultural, econômico, organizacional e psicológico. A incidência varia entre 5 e 25% dos trabalhadores, dependendo dos critérios de avaliação utilizados. Pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS) na União Européia mostrou que 8% dos trabalhadores (12 milhões) convivem com o tratamento tirânico de seus chefes. Segundo a OIT, a média de trabalhadores afetados por assédio moral em países como Inglaterra, França, Itália, Suécia, Irlanda, Alemanha, Espanha, Bélgica e Grécia era de 8,3% (Blanch, 2005).
Os estudos iniciais sobre hostilidade no trabalho são atribuídos a Brodsky, que elaborou o conceito deharassed worker nos anos 70. Heinz Leymann utilizou o termo mobbing no universo trabalhista sueco nos anos 80. Outros termos empregados: bullying e harassment nos EUA; psicoterror ou acoso moral na Espanha; harcèlement moral na França e Ijime no Japão (Hirigoyen, 2002 e Aguiar, 2003, Soares, 2006).
No Brasil, a expressão assédio moral surgiu no campo do direito administrativo municipal, em 1999, no Projeto de Lei sobre Assédio Moral da Câmara Municipal de SP, voltado para o funcionalismo, inspirado na pesquisa de Hirigoyen (2002).
O assédio moral pode ser entendido como:
Exposição prolongada e repetitiva a condições de trabalho que, deliberadamente, vão sendo degradadas. Surge e se propaga em relações hierárquicas assimétricas, desumanas e sem ética, marcada pelo abuso de poder e manipulações perversas (Barreto, 2000, p. 22).

Qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possa trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente do trabalho (Hirigoyen, 2002, p. 65).

Estas definições sinalizam os objetivos do assédio moral: desestabilizar, prejudicar ou destruir psicológica e profissionalmente a vítima, obtendo algum outro efeito desejado, como por exemplo: fortalecimento da própria auto-estima, demonstração de poder, prevenção de “risco”, redução de ameaça e auto-proteção, entre outros.
Leclerc (2005), Barreto (2005) e Espíndula (2006) identificam uma forte tendência das organizações em atribuir as causas do assédio moral às questões individuais. Concepção que desloca o foco da organização do trabalho para as pessoas com base em clichês deterministas do tipo: "fulano é assediador porque é problemático", naturalizando estas situações.
O assédio moral varia conforme o ambiente, seus atores, características e conseqüências para as pessoas e as empresas. É mais freqüente nas situações de assimetria de poder entre assediador e assediado, mas ocorre também de forma horizontal, entre pessoas com o mesmo poder na hierarquia. Normalmente os colegas de trabalho, ao presenciar o assédio, não esboçam reação em favor da vítima. Comportam-se como se a situação fosse normal e passam a desprezar ou ignorar o assediado por medo de serem demitidos ou também assediados. Menos freqüente é a situação com o assediador em nível hierárquico inferior. Caracteriza-se pela chantagem ou outra forma de pressão envolvendo informações que possam denegrir o assediado (Blanch, 2005; Barreto, 2000, 2005; Soares, 2006; Ferreira, 2006).
As vítimas preferenciais costumam ser: pessoas questionadoras, como representantes dos funcionários ou sindicais; pessoas que se diferenciam por competência ou capacitação; que podem gerar desconforto nos superiores ou aos colegas de trabalho; mulheres com filhos pequenos; pessoas com mais de 45 anos; pessoas com jornada parcial em função de tratamentos médicos, como DORT. Ou simplesmente pertencerem a grupos de minorias, como homossexuais e negros (Heloani, 2003; Hirigoyen, 2002; Barreto, 2005).
Quanto ao ambiente, é influenciado pela estrutura organizacional e o contexto sociolaboral. As organizações hiper-rígidas (burocratizadas) e hiper-flexíveis (desreguladas, instáveis, precárias, imprevisíveis, carentes de políticas coerentes) induzem às relações competitivas, conflituosas e marcadas pela falta de solidariedade, que configuram facilitadores do assédio moral. Nestas condições, a conduta se caracteriza pela liderança autoritária; gestão mediante estresse; mentira ou perseguição visando forçar o pedido de demissão “voluntária”, como medida de contenção de gastos por dispensa sem justa causa; falta de ética empresarial, impulsora da destruição de redes de apoio social; trato despersonalizado e de mau clima organizacional, além da "estratégia do avestruz" que induz a negar ou ocultar os problemas.
A caracterização das situações de assédio ainda é matéria controversa. A definição da freqüência é um dos aspectos centrais nestas discussões. Leymann e Zapf (de acordo com Araújo, 2006, p. 85) sustentam que a diferença entre conflito e assédio não se relaciona ao o que ou como é praticada a violência, mas nafreqüência e duração. Desta forma, reconhecem o assédio quando é praticado pelo menos uma vez por semana, por mais de seis meses. Este critério, no entanto, é objeto de discussões. Dependendo da legislação, como na inovadora lei canadense citada por Leclerc (2005, p. 70), esta questão é recolocada:
Uma conduta vexatória que se manifesta quer por comporta mentos, palavras, atos ou gestos repetidos, que são hostis ou não desejados, a qual ofende a dignidade ou a integridade psicológica ou física do trabalhador e que provoca, para este, um meio de trabalho nefasto. Uma só conduta grave pode também constituir o assédio psicológico se ela causa prejuízo e produz um efeito nocivo contínuo para o trabalhador.
Esta lei caracteriza o assédio a partir das suas conseqüências, mesmo diante de uma única situação, critério também utilizado para caracterizar situações de assédio sexual, que pode ser estabelecida a partir de uma única situação. No Brasil, a legislação sobre o tema ainda é insipiente. Segundo a procuradora do trabalho Adriane dos Reis, a caracterização do assédio a partir de uma única conduta grave é uma novidade em termos de legislação.
A ocorrência de assédio moral pode ser verificada através dos seguintes indícios: isolamento e incomunicabilidade física; proibição de conversar com os companheiros de trabalho; exclusão de atividades sociais da empresa; comentários maliciosos e desrespeitosos; atitudes e referências maldosas sobre aspectos físicos, caráter, costumes, crenças, condutas, família e outros; responsabilização por erros de outras pessoas; transmissão de informações erradas ou ocultação de informações para prejudicar o desempenho profissional; divulgação de rumores sobre a vida privada; designação de tarefas pouco importantes, degradantes ou impossíveis de serem cumpridas; mudança de mobiliário sem aviso prévio; mudança arbitrária do horário do turno de trabalho; manipulação do material de trabalho como apagar arquivos do computador; colocação de um trabalhador controlando o outro, fora do contexto da estrutura hierárquica da empresa; violação de correspondência; rebaixamento de função injustificada; contagem do tempo ou a limitação do número de vezes e do tempo em que o trabalhador permanece no banheiro; advertência em razão de atestados médicos ou de reclamação de direitos, entre outros (Hirigoyen, 2002; Blanch, 2005; Barreto 2005; Soares, 2006; Ferreira, 2006).
As crises no mercado de trabalho, condições e clima de trabalho estressantes, valores socioculturais dominantes, o individualismo, o culto aos instrumentos da violência, ideologia da “lei da selva” ou “vale tudo” no mercado de trabalho, os prejuízos e estereótipos sociais são algumas características do contexto sociolaboral onde se desenvolve estas situações.
Discutir a natureza jurídica do assédio moral foge aos nossos objetivos, mas é importante distingui-lo do dano moral.
Conforme citado por Gabriel (2005), para Savatier (1989), dano moral "é qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária, e abrange todo atentado à reputação da vítima, à sua autoridade legitima, ao seu pudor, à sua segurança e tranqüilidade, ao seu amor próprio estético, à integridade de sua inteligência, a suas afeições".
O Código Civil (2002) determina, no artigo 186, que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
O assédio moral pode ser enquadrado no gênero "dano moral" ou "discriminação". A Diretiva 76/207/CEE da União Européia adota o critério da "discriminação". Para Nascimento (2004), classificar o assédio moral como dano moral é defensável, mas não reflete sua natureza jurídica e, sim, sua conseqüência. O assédio moral resultará na obrigação de reparar dano moral causado por ato discriminatório violador de um direito personalíssimo[5].
A OIT por meio dos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, elegeu a eliminação da discriminação como um dos direitos fundamentais no trabalho. A OIT é responsável pela elaboração de normas internacionais referentes ao Direito do Trabalho. As normas da OIT são "sobreprincípios" para o ordenamento jurídico de cada país, que deve concretizá-los (Nascimento, 2004).
O que diferencia a violência psicológica do assédio moral no trabalho?
As situações de assédio moral tendem a ser mais veladas que as demais situações de violência no trabalho (Barreto, 2005).

Os equívocos conceituais entre assédio moral e o a violência organizacional ocorrem pelas semelhanças existentes entre os dois fenômenos: comportamentos agressivos de natureza psicológica, repetitivos, persistentes, que podem e geralmente tem repercussões negativas na saúde e na vida dos trabalhadores. O que diferencia as duas práticas de violência é a pergunta: para quê a violência é praticada? (Soboll, 2006, p. 137).

Para a autora, a violência organizacional, mesmo utilizada de forma sistemática, se refere ao uso do poder para controlar a coletividade e preservar interesses da organização. Pode levar à exclusão e causar danos. O assédio moral, ao contrário, não responde aos objetivos de produtividade, mas objetiva excluir e prejudicar pessoas ou grupos. Esta diferenciação contraria as ponderações anteriores, inclusive a explicitada pela procuradora Adriane Reis de Araújo em apresentações sobre o tema realizadas no Sindicato dos Bancários de Brasília e no XX Encontro de Juízes e Procuradores do Distrito Federal, ambos em 2006, que entende o assédio moral como "instrumento de gestão". A diferença entre conflitos no trabalho e o assédio moral, conforme vimos na sua dissertação, está mais na freqüência e na duração das situações. Em complemento, Leclerc (2005, p. 77) identificou que "o assédio tem quase sempre origem na organização".

Conseqüências da violência psicológica e assédio moral

As situações de violência e assédio moral podem resultar em graves conseqüências para as vítimas, como sintomas psicossomáticos e psicológicos: cefaléias, transtornos digestivos e cardiovasculares, fadiga crônica, insônia, hiperinsônia, irritabilidade, ansiedade, estresse, obsessões, fobias, apatias, mal-estar geral, crises de choro, dificuldades de atenção e de memória, sentimento de indefesa e culpabilidade, vergonha, injustiça e desconfiança, perplexidade, confusão e desorientação, crises de auto-estima, aumento de peso ou emagrecimento exagerado, aumento da pressão arterial, problemas digestivos, tremores e palpitações, redução da libido, sentimento de culpa e pensamentos suicidas, abuso de fumo, álcool ou outras drogas, pensamentos negativos, desesperança e pessimismo (Hirigoyen, 2002; Barreto, 2005; Blanch, 2005; Soares, 2006).
As conseqüências para as organizações envolvem o aumento do absenteísmo e dos acidentes de trabalho, a diminuição da produtividade e da competitividade organizacional, o déficit na qualidade de produtos e serviços, a deterioração da imagem da empresa, ruptura do contrato psicológico e ameaça de sanções econômicas pela responsabilidade por assédio.
Para a sociedade, representa a precarização das condições de qualidade de vida, crises de relações familiares e comunitárias, custos sociais por enfermidade, aumento do mal-estar, riscos de suicídio, de aborto e divórcios, além do desemprego.
Diante deste contexto, podemos refletir sobre a causalidade sistêmica das diversas patologias sociais do peso da pós-modernidade: banalização do mal e do sofrimento, cultura da violência sutil e da servidão, racionalidade econômica, predominância dos processos de exclusão, deficiência de significado, sobrecarga simbólica que leva à paralisia, acesso à liberdade e identidade via capacidade de consumo, manipulação da ameaça, a exacerbação da lógica os fins que justificam os meios.
Todas parecem cultivadas no caldo de cultura capitotalistarismo, marcado por estratégias de dominação racionalizadas no chamado pensamento-único.
Estas patologias se propagam diretamente no mundo do trabalho. Influenciam modos de pensar e sentir, comportamentos, identidades, a organização do trabalho. O diagnóstico dessas enfermidades dimensiona os enormes desafios para a contínua busca no mundo do trabalho de alegria, prazer, vivacidade, saúde, valores da modernidade - liberdade, igualdade, autonomia, subjetividade, justiça, solidariedade. Com essa perspectiva, entendemos caracterizada uma situação de insustentável leveza do ser-trabalhador na pós-modernidade



[1] O filme foi censurado no Brasil pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no governo de Getúlio Vargas, por ser considerado "comunista" e "desmoralizador das Forças Armadas".
[2] O livro de Aldous Huxley, de 1932, profetiza uma sociedade totalitária e desumanizada com predomínio das técnicas e do saber científico. "No admirável mundo novo fictício de Aldous Huxley, a estabilidade social é sustentada pela estratificação social e o condicionamento programado em laboratórios – cada um no seu lugar – e pelo uso de uma substância
denominada Soma, garantia da solidez emocional e antídoto à doença que acomete os críticos, aqueles que teimam em contestar o pensamento e a ordem absolutos". Silva (2004a).
[3] O norte-americano Francis Fukuyama no artigo The end of history, de 1989, publicado na revista The national interest, defendeu a tese de que a história acabou. Todos os países se juntariam ao redor do sistema político-econômico-democrático neoliberal. O futuro da humanidade seria o caminho do pensamento único neoliberal. Em 1992, Fukuyama lançou o livro The end of history and the last man, (no Brasil com o título O fim da história e o último homem, Rocco, Rio de janeiro, 1992). Posteriormente – em 1998, depois das crises econômicas dos anos 90 – Fukuyama admitiu o engano em entrevista ao New York Times.
[4] O termo brasilianização é entendido aqui como a deterioração dos níveis salariais, das garantias sociais e das condições de trabalho que, obviamente, se referem ao contexto social brasileiro.
[5] Constituição Federal, artigo 5º, parágrafo X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. O Código Civil. determina, no artigo 186, que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". 
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O QUE É BOM TEM QUE SER DIVULGADO... PARA QUE ALGUNS POSSAM SAIR DA SUA AMARROTADA FIGURA NAFTALÍNICA E TOMAR UM BANHO DE IDÉIAS PARA UM ALÉM DO HOMEM.

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