segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Descobertas...

Quando o caminhão de mudança ficou pronto, ficou decidido que a filha caçula e o filho mais velho viriam na boléia, juntamente com o pai e o tio, caminhoneiro que fez o carreto em troca da TV preto e branco, único eletrodoméstico que tinham. Os outros cinco filhos e a mãe iriam de ônibus, se encontrariam no novo estado, na nova cidade, nova vida. Ela e ele sempre foram o preferidos do pai, e são...
Sem rumo e arrumada como o caminhão, estava o seu olhar... a caçula e seu olhar guloso, engolindo tudo que via... desde essa época já vinha nessa tentativa. Buscava sempre por onde passava gravar tudo que via... um olhar filmador dos minutos... das paisagens... dos sons... louca desde a infância.
No caminhão estava tudo que tinham... colchões de palha, mesa e cadeiras de madeira perdendo uma tinta que se descascava pelo ressecamento; filtro de barro úmido, trouxas de roupas limpas e outra suja, panelas de ferro, bacias de alumínio muito ariadas; restos de mantimentos em sacos de farinha, arroz, feijão e açúcar, ferro de brasa, moedor de carne, moedor de café, torrador de café, e tantas parafernálias que nunca mais usaram... sem plantas, nem bichos vivo, fogão ficou na casa de madeira, era de barro, as carnes eram conservadas em latas de banha ... caminhão amarrado... acelerado e ela não parava de olhar... tudo... o nada... o que ficava e o que vinha.
Estrada, cansaço, a noite foi chegando, acabou dormindo no colo do pai, sobre as pernas do irmão. Tinha oito anos, cabelo joãozinho, magra e sem graça... riso frouxo...
Fizeram uma parada para abastecer, foram a lanchonete... fez as primeiras descobertas... tudo é muito caro e a coxinha de frango é uma delícia, dividiu um refrigerante caçulinha com o irmão. O pai ficou olhando, não comeu, não tinha dinheiro para todos, sempre foi assim, servia os filhos primeiro e comia o que sobrava, ela não entendia quando pequena, quando moça tinha raiva, com o tempo foi passando de dó para orgulho, era um cinismo honesto.
Ao chegarem no novo endereço todos estavam exaustos, de corpo e alma, esgotados. A chave da casa nova estava com a tia do pai, uma senhora solitária, boa, agradável e muito porca... a casa era muito pequena para nove pessoas, vieram do sítio, não conheciam muro, nem casa de alvenaria, nem asfalto; trânsito só de animais; tinha uma cozinha com pia e tanque de cimento (preferia o batedor), uma sala onde foram colocadas duas beliches, um quarto para os meus pais, tudo cheio de porta e chaves, não precisava mais buscar água na mina, nem lenha no pasto, nem ligar o lampião, mas tinha que trabalhar muito pra ter essas coisas. O quintal não tinha nada do terreiro de antes, nem tinha pomar, nem horta, nem vaca, nem galinha, nem porco... era uma tristeza só... ficava espremida no meio de outras duas casas, a de cima morava a dona das casas, a caçula descobriu mais tarde que o filho, moço graúdo, gostava de dormir pelado e de janela aberta, como essa cidade é quente. A casa de baixo morava outro casal inquilino, com duas filhas, uma na puberdade e outra com seus 4 anos. Foi a primeira amizade da filha caçula...
Na casa da tia a caçula descobriu que geladeiras são lugares onde se guarda muitos alimentos para estragarem mais devagar, para que possam comê-los quando estiverem velhos... com gosto indescritível... descobriu que deixou as ratazanas das tulhas para trás, mas suas companhias foram trocadas pelas baratas... sempre novidades ... e na casa da dona Domingas, quase tudo de comer cheirava barata, o restante da casa, cheia de moldes de artesanato de retalhos que costumava fazer e vender para complementar a aposentadoria, cheirava cigarro, havia furos deles nas almofadas dos sofás, nas cortinas e em seus vestidos muito estampados e remendado. Vivia queimando os colchões, em volta da mesa, nos braços de madeira dos sofás, em volta da estante, em todo lugar que colocava o cigarro aceso e esquecia com a conversa ou distraída na televisão. Tinha pouco cabelo e bem alvoroçado, estava sempre despenteada, muito talentosa com os seus crochês, as pessoas não costumavam comer coisas em sua casa, por causa do bolor, das baratas, do cigarro, do seu esquecimento, mas era muito boa de uma bondade infantil e teimosa, tinha uma voz grave e acolhedora, um sorriso acinzentado e sincero. Os acolheu entre seus fartos seios, sempre com um masso de cigarro guardado e amassado entre eles e o sultien de pano. Conseguia verdura e legumes dos conhecidos para reforçar a mistura. Conseguiu matricular todos os filhos em uma boa escola, conseguiu um serviço para a mãe de doméstica, conseguiu manter a família unida, alimentada e acolhida...
A filha caçula continuava fazendo descobertas por todos os lugares por onde passava com seus grandes olhos comilões, como não apanhar do professor de matemática... e porque era motivo de piada por ir de chinelo a escola e levar pão caseiro com doce de abóbora de lanche... descobriu também o primeiro amor (Fábio) e o quanto não ser vista é como não existir... (reencontrou-o no ensino médio, quando fazia questão de ser invisível)... Seus olhos vazios, não lembra nada do que viu na viagem... nada do que deixou para trás. Descobriu que certas descobertas são levadas para toda a vida... e devem passar pelo divã...

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