quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Meus sapatos em pés descalços...


Sai da escola
Passa pelas ruas sem percebê-las
Busca o menino para levá-lo a escola
Volta para pegar a menina na mãe
Precisa voltar para casa, angústia
Celular chamando, irmã com saudade convida para café da tarde
Casa da mãe, pegar filha, outra irmã e sobrinha aparecem, conversas repetidas, encontros e infortúnios, quer ir para casa...
Todos vão para casa da irmã com saudades...
A mesma recebe com abraço apertado de quem tem algo a pedir ou a demonstrar (como uma conversão)
Forte também é o café que leva seu cheiro até o portão, a mesa está posta, os líquidos quentes, todos comem e conversam enebriados pelo cheiro da tarde abafada, nublada e querendo chover...
Conversas paralelas, entrecruzadas, atropelam-se sem cerimônia, risos, crianças correndo, rede, cachorro na coleira chorando, uivando e ladrando (eu alheia - de soslaio - fora do corpo familiar, observando sentada no telhado, segurando a antena)
Uns limpam, uns comem, uns preparam mais alimento a mesa, uns repoem café... todos falam... bolachas, biscoitos de polvilho, sequilhos de nata, queijo, bolo, e uma desgraçada saudade de mim...
O tilintar de xícaras... copos com restos de leite e suco espalhados... faca meio limpas...
Acaba o martírio... todos estão fartos e vazios, a via sacra termina em casa...
Entra, acomoda a filha com um filme infantil, tira a roupa e... de calcinha e sultien faz uma coisa que não lembra ter feito em sua vida, por mais eco parecessem os seus dias ou noites...
Pegou um pano no tanque, o frasco de vinagre debaixo da pia, tirou todos os calçados da sapateira, sentou-se no chão do quarto e passou a limpá-los, um a um, freneticamente.
Limpou-os como num gesto desesperado de busca de sentidos para as coisas que tem feito, falado, pensado ou sentido nos últimos anos... não que tenha muitos sapatos, nunca foi consumista deste artefato... nem uma centopéia fanática... alguns ganhados, poucos comprados... outros nem servem ou raramente usa...
Todos estavam espalhados em frente ao seu corpo quase nu... e foram sendo limpos um a um, por pares, sistematicamente, diante de mãos ágeis (como nunca) e mente vazia, no mundo do nada, um nada no mundo... aquele cheiro "avinagrado" na mão, entrando em suas narinas soltas num vazio que transpassava seu corpo... não se sentia... estava invisível em sua langerie cor da pele... quer estar em lugar nenhum... bêbada... fazendo exatamente o que estava fazendo... algo obstinadamente sem sentido...
Estava drogada em sua lucidez, uma musa diante da "Sapateira de Delfos" devorando-lhe os sapatos desinfetados, higienizados, com as respostas dos destinos de cada um, os caminhos por onde passaria...
Num "dejavu" surgiram momentos com aqueles pares... gata de botas, cinderela, bailarina, sapatos que tropeçaram em formaturas... que lecionaram... tomaram cerveja... lecionaram...mentiram para si mesmos.... tomaram cerveja.... esperaram ao lado de camas, sofás e piscinas... correram, voltaram a trás... confortaram nas chuvas, tempestades e calor escaldante...
Alguns lembravam algemas, outros asas, outros uma bola de ferro, outro abismo, tinha os sapatos para a ninfa doida... outro para inventar histórias... e o de passear com o cachorro...
Todos estão limpos, tarefa estranha...
Paixão, atração, interesse, aptidão, inclinações esdrúxulas para uma tarde quase chuvosa, abafada e deprimente, nessa bolha de nada onde estou dentro de mim... pensar me transporta a uma inexistência de experiências que transcendem minhas dúvidas inexoráveis... sapatos odorizados... preocupação nova... arrumar-se fora o que dentro a covardia conserva... vinagre conserva... os sapatos conservam os pés... a vida se conserva na exigência da morte... mesmo sem ter sido uma existência consciente.
Os sapatos estão limpos, tomar banho e dormir no sofá com a filha, até que a noite lhe traga a rotina e a confirmação da inconsistência.
Detestava estar calçada e ouvir: "não vamos falar agora que tem alguém descalça por perto..." e se calavam ou mudavam de assunto...

Um comentário:

  1. o cachorro da Dorothy, mágico de Oz, chamava totó, sapatos mágicos, leões medrosos e homens de lata.
    Gostei do texto, da faxina nos sapatos.
    Centopeia da Alice, em cima do cogumelo fumando narguilé.

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