quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Relações por um Fio XV

 

São 20 e 30 h, a mulher saiu com as amigas do serviço (ao menos foi o que me disse) e eu fiquei aqui, às traças. Pensei: vou pôr o cd do Chico (o que eu vou levar pra você amanhã) e escrever pra Moça. Aproveitei e abri também um vinho – esse substituto imperfeito – que estava esquecido num fundo de armário, tinto e seco, sei que você não gosta.
CD do Chico foi mesmo pegar pesado, mas você também pegou pesado hoje, quando afagou minha única vaidade: disse que gosta das coisas que escrevo, da maneira como eu escrevo. E eu já fiquei remexendo umas pastas antigas cheias de coisas escritas, louco pra te mostras algumas/todas.
Mas vou conter meu ego e enviar alguns sonetos de quem verdadeiramente escreve e não dessa fraude bem construída que vos fala. Falei dela pra você, Florbela Spanca, portuguesa do Modernismo. Seu livro mais conhecido talvez seja “O livro de mágoas”, esse primeiro soneto é, por si só, já uma apresentação do livro.
 
                                            Este livro ...
Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo ... e compreendê-lo.  

Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem , sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes ... Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas ... Dores ... Ansiedades!
Livro de Sombras ... Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo ... (Trouxe-o no meu seio ...)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio! ...
 
 
Mas gosto mais desse:
                                A flor do sonho
  A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim! ...
Milagre ... fantasia ... ou, talvez, sina ...

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?! ...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minha’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi ...
 
Ou esse:
                              INCONSTÂNCIA
Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
  Ou ainda:
REALIDADE
Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleireira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...
  E um último (por hoje), eu poderia mandar o livro inteiro, gosto muita dessa moça, ela tinha uns 23 anos quando escreveu esse livro, esse próprio é uma espécie de auto-retrato.
                                    EU
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
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E sei que não devia, mas não resisto em lhe mandar esse, do Manuel Bandeira, outro dos meus preferidos,

O  IMPOSSÍVEL  CARINHO
            Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
            Quero apenas contar-te a minha ternura
            Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás
            Eu te pudesse repor
            - Eu soubesse repor –
            No coração despedaçado
            As mais puras alegrias da tua infância.

Até hoje à noite, Moça.
  Beijos.
Moço.

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